Lembrando Ari Amaro, o Bedeu

Charge: André Macedo/Diário Popular

Somos seres de esquecimento. A vida flui em seu mesurado passo e, por desígnios do Criador, apagamo-nos tal qual uma tela que se vai despintando até sumir por completo. Temos, entretanto, lembranças que se afixam a tela teimosamente, num tocante ímpeto de permanência. Refiro-me as lembranças seminais, afixadas em nossa mente pelas cores da infância. Essas, creio, serão os derradeiros traços da obra que se vai aos poucos diluindo. No panteão de nossa memória, os heróis ocupam lugar de destaque. Figuras cujos feitos estabeleceram as bases de nossa personalidade, dando-nos segurança para a caminhada que se ia começar. Dentre esses heróis, claro, há nicho especial para os craques da bola. Lembro-me de um em especial. Trata-se de Ari Amaro Pires, o Bedeu. Eu tinha 6 anos quando o vi jogar pela primeira vez na Boca. Ponta direita habilidoso, dotado de força e velocidade, Bedeu deixou no gramado o registro de um futebol com acento poético. Da escola de um Garrincha, Ari Amaro não jogava, mas brincava com a bola, endereçando-lhe destinos inimagináveis, acirrando a truculência dos zagueiros que, suando pregos, tentavam caçar a “pantera negra”. Natural de Arroio Mala, Herval, começou nas divisões de base do Lobão nos anos 50, e, pasmem, como ponteiro esquerdo. Em 1953, surpreendeu jogando pela direita, reforçando a certeza de que havia nele qualidades de um jogador diferenciado, cheio de breque e malícia. Jogou como titular até final dos anos 60, indo em 61 para o Internacional de Porto Alegre. Após rápida passagem pelo Metropol, retornou a Pelotas em 1963, onde encerrou a brilhante carreira. Bedeu, penso, foi jogador de um só time, o Esporte Clube Pelotas, que o acolheu desde sempre. Quando se afastou da Boca, imagino, sentia-se deslocado, meio órfão, não conseguindo executar as “parábolas” que sua mente criativa imaginava. Por isso retornou ao “berço” e não mais o abandonou.

Aliás, viveu até o fim no estádio, onde a direção, em retribuição ao muito que fizera pelo Clube do coração, ofereceu-lhe permanentemente morada, seu particularíssimo Olimpo. Ari Amaro, portanto, nos dias de jogos, singrava o estádio com seu passo dançarino, envergando terno e gravata. Aliás, era do tempo em que se ia à padaria de terno e gravata. No fim da vida, já doente, andava pelas ruas da cidade falando consigo mesmo, tentando convencer-se de sua grandeza, um autêntico e macilento herói chapliniano, conhecido dos botecos da cidade, principalmente o Bar Cruz de Malta, seu reduto. Sempre sorrindo, teimosamente elegante, espargia gasta e melancólica sobriedade a quem quer que fosse, conhecido ou desconhecido, falando das glórias de seu passado. Era de uma alegria infantil, ingênua. Um anjo caído, certamente, a peregrinar pela existência dura como o granito. Ah, amigo, domingo tem jogo na Boca… Pelotas x Internacional de Santa Maria. Boca que assistiu teu balé, que se contagiou com a alegria do menino interiorano. Em campo jogadores que se candidatam a permanecer na tela mental dos torcedores de hoje, que pulam e cantam na arquibancada. Imagem que o tempo, implacável, encarregar-se-á de apagar lentamente, assim como já apagou a “pintura” do grande Bedeu na memória de muita gente. Observar os atuais atletas defendendo o manto áureo-cerúleo, com certeza avivará em mim a lembrança de Ari Amaro, falecido a 20 de agosto de 2002, aos 67 anos, vítima de insuficiência cardíaca. Sobretudo sentir-me-ei menino outra vez.

Manoel Soares Magalhães.


Bedeu

Ari Amaro Pires

03/01/1935 a 20/08/2002 

1 comentário

    • Rolf lichtnow em março 24, 2020 às 8:21 pm
    • Responder

    Eu vi o Bedeu jogar. Ótimo jogador .Assisti ao jogo Pelotas e Flamengo.

Deixe um comentário

Seu e-mail não será publicado.