Adolpho Milman, o Russo

Fugindo de Pelotas para jogar bola em Paris

Estádio Boca do Lobo, do Esporte Clube Pelotas em 1930. No detalhe, Adolfo Milman, o Russo

Adolfo Milman, que passou sua infância e adolescência em Pelotas e que se transformou em um dos mais destacados jogadores do futebol brasileiro dos anos 1930, o Russo, não nasceu no Afeganistão, como está registrado na Wikipédia.
Não, ele não veio à luz naquele país distante que está permanentemente em guerra e que já afugentou de suas montanhas invasores ingleses, russos e americanos (associados a europeus). O Russo simplesmente nasceu na prosaica Argentina, nossa vizinha de quintal.

Eldorado

A história da chegada à América dos pais do Russo, Salomão e Clara Milman, se assemelha à de milhares de outros judeus de países da Europa Central que convergiram para o extremo Sul da América Latina na virada para o Século 20.

Vinham todos em busca do Eldorado, pretendiam proporcionar uma vida melhor a seus filhos do Novo Mundo, mas também queriam escapar dos horrores dos pogroms (palavra russa que designa ataques violentos a grupos minoritários).

Estima-se que 2 milhões de judeus tenham deixado a Rússia entre 1880 e 1920 para escapar à perseguição religiosa. Os judeus eram especialmente numerosos no Sul do Império dos Tzares, no que hoje é a Ucrânia, que só surgiu como estado independente em 1991 após o esfacelamento da União Soviética.

Salomão deixou a Ucrânia aos 16 anos a bordo de um cargueiro que tinha a Argentina como destino. Como as minguadas economias da família só permitiam a compra de uma passagem, ele foi o desbravador. A América do Sul fora escolhida porque os Milman já tinham parentes por aqui.

“Cruzar o mundo, aos 16 anos, falando somente ídiche e russo, buscando uma vida melhor, que coragem!”, comenta Jane Gershenson, uma das sobrinhas do Russo que conhece bem a história familiar.

Salomão contava aos netos que, ao desembarcar, o dinheiro que tinha só lhe permitia comer ou barbear-se. Como precisava de um emprego, escolheu fazer a barba. Depois de bem escanhoado, conseguiu ali mesmo, no porto de Buenos Aires, seu primeiro posto de trabalho.

Empregou-se depois em pequenas fabricas de roupas. Trabalhando duro durante um ano, conseguiu economizar o suficiente para comprar bilhetes de navio para toda a sua família, pai, mãe e duas irmãs, que vieram juntar-se a ele.

Na capital argentina, a comunidade judaica – como sempre ocorreu ao longo de sua diáspora – se ajudava e protegia. Salomão logo conheceu Clara, que havia feito o mesmo trajeto que ele: eram dois jovens que haviam trocado o rio Dnieper, onde costumavam nadar quando crianças, pelo rio da Prata.

Pelotas

Salomão e Clara casaram-se em Buenos Aires, mas logo partiram para viver na província de Entre Rios. Lá vieram à luz seus três primeiros filhos: Joana, Adolfo (em 26 de julho de 1915) e Bertha. Tempos depois, se transferiram para Pelotas, onde nasceram os outros cinco: Moisés, Isaac, Milton, Rosa e Ada.

A confecção de roupas acabou se transformando na ocupação principal de Salomão Milman até o fim da vida. Em Pelotas, ele – que era carinhosamente chamado pelos netos de vô Mamão – possuía uma pequena fábrica de casacos e japonas, chamada “Londres”.

“Muito brinquei nessa fábrica, que ficava na frente do mercado público… O prédio ainda está por lá!”, acrescenta Jane.

Quando os Milman chegaram ao Brasil, Pelotas era uma cidade muito rica, cosmopolita, aberta aos imigrantes e que contava com uma pequena colônia de judeus.

Na infância, paralelamente à educação formal, Adolfo e seus irmãos foram instruídos na doutrina judaica. Na época, havia em Pelotas um professor que ensinava às crianças da colônia.

Depois das peladas infantis pelos campinhos, lá pela adolescência, já apelidado Russo, Adolfo começou a jogar bola pelo Esporte Clube Pelotas. Era um craque, um center-forward, um impiedoso marcador de golos. Parece que chegou a integrar uma equipe muito forte do time da Boca do Lobo que atuou com destaque no campeonato gaúcho de 1933.

Fuga

Um dia, revoltado com o fato de o velho Salomão não lhe permitir que se dedicasse inteiramente ao esporte bretão, Adolfo meteu o pé na estrada. Ou seja, pôs o pé sobre o convés de um vapor que o levou a Porto Alegre, onde apanhou um navio que o conduziu ao Rio de Janeiro.

Em 1933, aos 18 anos, chegou àquela que, à época, era realmente uma cidade maravilhosa. Hospedou-se no bairro de Laranjeiras, em uma pensão onde ficavam alojados os jogadores do Fluminense, clube pelo qual fora contratado.

Hoje, passado exatamente um século do nascimento do Russo, reside nesse bairro um dos filhos do Russo, o advogado Fernando Magalhães Milman, que muito contribui para a redação desta crônica. Fernando só não colaborou mais porque Adolfo não falava muito sobre sua infância em Pelotas. “Era misterioso sobre o seu passado”, diz o filho.

Em 1935, o Pó-de-arroz contratou de uma sentada 11 jogadores da seleção paulista, bicampeã do brasileiro de seleções estaduais. Entre os que chegaram às Laranjeiras destacavam-se Romeu e Tim, que juntaram-se a Russo e Brant. Foi formado então um time fenomenal que, entre 1936 e 1941, conquistaria cinco campeonatos cariocas.

Contrato de risco

A brilhante carreira de Russo foi interrompida em 1938, quando ele sofreu uma lesão muito grave – rompimento de um ligamento cruzado. Ameaçado de ser obrigado a abandonar o futebol, recebeu um convite para atuar em uma equipe francesa.

Segundo Fernando Milman, esse clube era o Racing, de Paris. Já para o jornalista Carlos Alberto Pessôa, que escreveu um livro – O sábio de chuteiras – sobre Adolfo Milman, a equipe francesa se chamava Cerele S.A.

O certo é que Russo firmou um verdadeiro contrato de risco. Ele seria operado em Paris e, se melhorasse, jogaria pelo clube francês. Foi o que aconteceu. Num tempo em que os homens costumavam cumprir sua palavra, Adolfo permaneceu na capital francesa até 1940. Ganhou dois campeonatos na França.

Segunda fuga

No começo da década de 1940, mais uma vez, o Russo teve de fugir.

Na primeira vez, abandonara Pelotas forçado pela compreensível intransigência de um pai preocupado com o futuro profissional de seu rebento. Futebol e música eram, na época, ocupações de malandros.

Na segunda vez, ele fugiu de Paris para escapar das garras de um genocida que nos anos seguintes comandaria uma carnificina de 26 milhões de pessoas, entre as quais estariam 6 milhões de judeus, exatamente a metade dos que viviam no Velho Continente em 1939.

Goleador

Russo chegou ao Brasil a tempo de ganhar o campeonato carioca de 1940 pelo Fluminense. Repetiria o feito no campeonato do ano seguinte, quando o ataque do tricolor faria 106 golos, marca jamais igualada.

Adolfo Milman atuou 247 vezes pelo tricolor das Laranjeiras e fez 154 tentos, alcançando a respeitável média de 0,62 golo por partida, exatamente a mesma que seria obtida por Roberto Dinamite quatro décadas depois. A média de Pelé foi de 0,89.

Na sua volta ao Brasil, Russo sabia que não era mais o mesmo jogador. Como seu joelho não havia ficado totalmente curado, passou a jogar mais recuado. Encerrou a carreira de atleta aos 29 anos.

Jogou pela seleção brasileira em 1942 e foi supervisor na seleção brasileira de futebol em 1970, atuando ao lado de João Saldanha na montagem da equipe que venceria a Copa do Mundo daquele ano.

Como era o cidadão Adolfo Milman?

Responde o jornalista Carlos Alberto Pessôa em O sábio de chuteiras:

“A primeira impressão não poderia ser melhor. Achei-o afável, simpático. Numa frase: gente fina. Fala mansa, voz baixa, poucos gestos. A discrição encarnada. Melhor de tudo, nenhuma pose, nenhuma pretensão.”

Haga lo que quiera

Carlos Alberto Pessôa narra uma historinha exemplar, do homem e do atleta.

No dia 4 de setembro de 1943, no vestiário do Fluminense, pouco antes de uma partida contra o Botafogo, o treinador do time, o uruguaio Ondino Vieira, entrega a camiseta a Adolfo:

  • Russo, eu só quero uma coisa de você: marque o Santamaria.

Detalhe: esse tal Santamaria era um médio argentino, de grande categoria, que já havia jogado nas Laranjeiras.

Russo devolve a camisa número 9 ao uruguaio.

  • Então eu não vou jogar; escale o Brant.
  • Mas o Brant é half – reage o treinador, perplexo. – Como vou escalá-lo no seu lugar se você é center-forward?

Russo, calmo, didático, sem alterar a voz:

  • Você não quer que eu marque o Santamaria? Então escale o Brant. Eu sou forward; sei fazer gols, não sei marcar. E se entrar para marcar o Santamaria deixarei de fazer o que sei para fazer o que não sei. Ele, que é esperto, vai me arrastar até a nossa área. Eles dominarão o jogo, nós teremos dificuldades de sair de lá de trás e acabaremos perdendo. Se eu jogar, vou tentar fazer o que sei, vou tentar preocupar o Santamaría, fazer com que ele me marque. E me aproveitar de algum descuido, de alguma oportunidade para fazer um gol.

Ondino, como Pilatos, lavou as mãos:

  • Haga lo que quiera.

O Fluminense venceu por 5 a 3. O filho de ucranianos criado em Pelotas fez o keeper botafoguense esmurrar a grama em três oportunidades.

Casamento e bridge

Em 26 de julho de 1943, no dia em que completava 28 anos, Adolfo casou-se com Beatriz Maria de Magalhães, que havia conhecido em um dos muitos bailes que na época eram realizados na sede do Fluminense. Tiveram dois filhos, Fernando e Gilda.

Outra curiosidade sobre Russo é que ele, após abandonar o futebol, transformou-se num melhores jogadores de bridge do País.

O jogador de futebol consagrado nacionalmente só voltou à cidade da sua infância três décadas depois de sua partida – quando já estava com 50 anos – para rever seus irmãos e dona Clara. Seu pai havia falecido anos antes.

Adolfo Milman, o Russo, morreu em 22 de fevereiro de 1980, aos 65 anos, no Rio de Janeiro.

Lourenço Cazarré é escritor, dramaturgo e jornalista

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