Vitória com delay

Foi um domingo de fortes emoções.
Após 2 anos de uma longa e inquietante espera, finalmente pudemos voltar à nossa casa.
Tal afirmação é tão verdadeira aos áureo-cerúleos quanto pode soar paradoxal àqueles não familiarizados com esse sentimento, já que, nesse período tão sui generis na história da humanidade que foi (e segue sendo) a pandemia de COVID-19, estar em casa foi mais regra do que exceção. Contudo, o conceito de casa ao qual nos referimos transcende o do dicionário e tem raízes no âmago de cada torcedor, que se encorajado a seguir o rumo do coração, chegará instintivamente aos portões da Boca do Lobo (e não ao Alegrete).
Para muitos, a Boca do Lobo ganha ares de casa desde a mais tenra idade, quando a passada mais larga quase não alcança a altura dos degraus da arquibancada, numa íngreme escalada conduzida pela mão de um Lobo ou Loba experimentado/a nas lides do árduo e prazeroso ofício do áureo-cerulismo. Outros tantos acabam atraídos ao belo e imponente estádio da Avenida por amizades, que não raro se multiplicam e se fortalecem nessa incursão futebolística, tornando dos jogos mais do que um divertimento, um hábito. O fato é que, independente da via que leva um indivíduo a passar a frequentar a Boca – cujas possibilidades são inesgotáveis, o que faz com que a chamemos de casa se deve a fatores que se sobrepõem às leis da razão e respondem ao sentimento.
Como vaticinado por um sábio senhor, na maravilhosa película “El Secreto de Sus Ojos”: “El tipo puede cambiar de todo: de cara, de casa, de familia, de novia, de religión, de Dios… pero hay una cosa que no puede cambiar: […] de pasión.” Essa paixão, fomentada por memórias inesquecíveis de jornadas antológicas e títulos, tristezas e decepções atrozes, permeada pelos rituais e folclores particulares de cada um, toma tal dimensão na vida de um indivíduo que pouco a pouco se confunde com sua própria história, tornando-se parte de sua essência. A cada partida, partimos – cada um de seu ponto da cidade, do país, do mundo, da vida; de corpo presente, ou em pensamento; sozinhos, ou mesmo acompanhados, física ou espiritualmente, para o endereço que compartilhamos: Parque Dom Antônio Zattera, 300. Um coração no coração da cidade, que voltou a pulsar na voz de milhares de torcedores que empurraram o Pelotas para uma importante vitória na estreia de mais uma inglória Divisão de Acesso. Em cada sorriso develado, o alívio e a satisfação do retorno aos velhos costumes.
O jogo, em si, foi fraco. Entramos com a escalação idêntica à do último amistoso (Cetin, Raphinha, Cambuci, Kanu, Vavá, Igor, Jardel, Eliomar, João Vitor, Otávio, Caíque), com o time postado com a bola em um 4-1-4-1 e se defendendo em um 5-3-2, com Vavá e Otávio alternando, nas fases ofensiva e defensiva, como lateral esquerdo/zagueiro, e meia esquerda/lateral esquerdo, respectivamente.
Na primeira metade, o Pelotas, apesar de dono das ações, foi um time burocrático, que passou a maior parte do tempo fazendo circular a bola de forma inócua entre seus defensores, buscando – sem sucesso – caminhos para furar o bloqueio imposto por um São Paulo totalmente retraído. As raras ocasiões criadas deram-se em bolas alçadas na área, que não ofereceram perigo à meta adversária. No contexto de uma sociedade familiarizada com lives, streamings e transmissões remotas, que ganharam relevância jamais vista em decorrência da pandemia, o Pelotas, a essa altura, parecia um time com delay. Os movimentos eram lentificados, sempre atrasados em relação ao que a situação pedia.
Na segunda etapa, com a entrada de Itaqui e dissolução do tripé defensivo, o Lobo passou a apresentar maior volume de jogo, tendo Jardel e Itaqui na construção das jogadas, com Eliomar mais avançado. Dessa forma, passamos a empilhar chances de gol, porém sem precisão nos arremates. O São Paulo, frequentador assíduo da competição, tratou de evocar todo o repertório de ardis aprendidos em anos de divisão de acesso, fazendo cera e cai-cai desmedida e desavergonhadamente.
Quando as esperanças por uma vitória pareciam escorrer por entre os dedos, Sapeka – que entrou na vaga de João Vitor, recuperou a bola que ele mesmo perdera em lance individual, partindo para cima do adversário, que não viu outra alternativa senão pará-lo com falta, já dentro da área. Pênalti, para delírio da massa azul e ouro.
Caberia ao experiente Itaqui a tarefa de dar um final feliz a mais um típico episódio agônico que só o Pelotas é capaz de proporcionar em uma tarde de domingo. Realmente, algumas coisas nunca mudam. Ele parte para a bola, que beija o travessão, antes de tomar trajetória derradeira e inexorável para o fundo das redes. Nesse ínterim, o delay entre a bola na trave e o gol, sinto que cuspi o coração e o engoli de volta.
Festa na Avenida. É a redenção do veterano – outrora muitas vezes fora de combate ou com rendimento abaixo das expectativas, no reencontro da torcida com o seu time e com a sua casa.
Começar vencendo é sempre importante. Há muito a ser aprimorado e corrigido, além de ter ficado evidente que necessitamos de reforços em algumas posições. As agruras da divisão de acesso se apresentarão a seu tempo, e a partida serviu como cartão de visitas e alerta às práticas de adversários futuros: retranca e muito anti-jogo.
Contudo, ao menos por enquanto, ainda que ansioso pelo porvir, me dou ao luxo de saborear as memórias dessa tarde feliz de reencontro com o futebol, daquelas que lembraremos por muitos anos, por tudo de especial que vivemos: o retorno, após tanto tempo; a vitória; e é claro, o delay – que quase nos mata do coração.

2 comentários

    • MIguel Langone em abril 11, 2022 às 4:23 pm
    • Responder

    Ótima crônica, parabéns!
    Aproveitando e comentando o quanto a imprensa local é xavante. Perceberam hoje a imagens da RBS do jogo….mostram a torcida do pelotas em ângulo aberto antes do jogo começar sem a UPP.. ( dando a entender que tinha meia dúzia de gato pingado),e mostram a torcida do São Paulo em ângulo fechado parecendo maior. É óbvio que o editor de imagens é xavante. No geral a maioria não comente ou destaca o quanto a nossa torcida é única e a mais apaixonante. Eles tem medo de perder o posto imagino, pq só a nossa torcida é capaz de enfrentá-los de igual para igual… e isso os incomoda.

    • Maiquel em abril 11, 2022 às 11:12 pm
    • Responder

    Perfeito

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